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Abordagem clínica da dispepsia funcional


Dra. Mafalda João | Gastrenterologia

Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra


Os distúrbios do eixo cérebro-intestino são responsáveis por 10 % das consultas em cuidados de saúde primários. Englobam cerca de 30 condições crónicas subdivididas pela localização anatómica e com critérios de diagnóstico baseados em sintomas específicos definidos pela Rome Foundation.

A dispepsia funcional é um dos distúrbios do eixo cérebro-intestino mais comuns apresentando uma prevalência de cerca de 20 % e sendo responsável por até 5 % das consultas dos cuidados de saúde primários.

Segundo os critérios de Roma IV da Rome Foundation, a dispepsia funcional define-se pela presença de sintomas epigástricos crónicos e recorrentes que englobam a saciedade precoce, a plenitude pós-prandial bem como a dor e o ardor epigástrico. Subaclassifica-se em síndrome de desconforto pós-prandial e síndrome de dor epigástrica. A saciedade precoce e plenitude pós-prandial devem ocorrer pelo menos três dias por semana nos três meses precedentes para o diagnóstico de síndrome de desconforto pós-prandial. A dor ou o ardor epigástricos devem estar presentes pelo menos um dia por semana nos três meses precedentes para o diagnóstico de síndrome de dor epigástrica. Em ambos os subgrupos, os sintomas devem ter tido início, pelo menos, seis meses antes do diagnóstico. Em um terço dos indivíduos com dispepsia funcional verifica-se uma sobreposição entre síndrome de dor epigástrica e síndrome de desconforto pós-prandial.

Múltiplas vias fisiopatológicas bidirecionais têm sido propostas para a génese dos sintomas dispépticos. A teoria mais aceite considera o duodeno o elemento integrador-chave, sendo a inflamação da mucosa duodenal e a ativação imune as responsáveis pela disfunção motora gástrica e pela hiperexcitabilidade neuronal.

São considerados fatores de risco para dispepsia funcional o género feminino, o tabagismo, a toma de anti-inflamatórios não esteroides bem como o elevado índice de massa corporal. A infeção por Helicobacter pylori é considerada uma causa orgânica de dispepsia sendo designada de dispepsia associada a Helicobacter pylori.

A abordagem do doente dispéptico requer a obtenção de uma história clínica cuidadosa, se possível com a subclassificação em desconforto pós-prandial e síndrome de dor epigástrica. A síndrome do intestino irritável, as enxaquecas e a síndrome de fadiga crónica coexistem frequentemente com a dispepsia funcional. O exame físico é geralmente normal.

Num indivíduo com sintomas típicos importa identificar os fatores de alarme que devem motivar a realização de estudo endoscópico: perda ponderal, disfagia, odinofagia, anemia ferropénica, vómitos persistentes, história familiar de neoplasia do trato digestivo superior e idade superior a 50 anos. Se existir indicação para estudo endoscópico deve ser efetuada pesquisa de infeção por Helicobacter pylori. Na ausência de fatores de alarme deve ser realizado um teste não invasivo para pesquisa de H. pylori. Caso se verifique infeção por H. pylori deve ser efetuada a sua erradicação de acordo com as normas de orientação clínica atuais. Nos restantes casos é efetuado o diagnóstico de dispepsia funcional. A manutenção dos sintomas 6-12 meses após verificação de erradicação da infeção também deve levar ao diagnóstico de dispepsia funcional.

Uma vez efetuado o diagnóstico é fundamental explicá-lo ao doente de forma inteligível e tendo em conta o eixo cérebro-trato gastrointestinal.

No âmbito da terapêutica não farmacológica destacam-se as modificações do estilo de vida, designadamente da higiene do sono e exercício físico. No âmbito nutricional, a maioria dos doentes reporta melhoria sintomática com ingestão de refeições de pequeno volume, frequentes e em horários fixos, mastigando lentamente e completamente os alimentos, de forma pausada e num ambiente tranquilo. A redução da ingestão de gorduras saturadas, apresenta-se como uma das medidas dietéticas corroboradas pela evidência no controlo da sintomatologia dispéptica. A redução de consumo de alimentos picantes, cafeina e álcool deve ser recomendada se existir associação sintomática.

No âmbito da terapêutica farmacológica, os inibidores da bomba de protões (IBP) são considerados fármacos de primeira linha nos dois subtipos de dispepsia funcional. Devem ser iniciados na dose standard em jejum e mantidos 4 semanas (até um máximo de 8 semanas), com posterior reavaliação clínica. O tipo de IBP e o aumento da dose não foram associados a melhoria do controlo sintomático. O uso prolongado não está recomendado sendo a estratégia on demand passível de discussão com o doente. Nos casos refratários ao IBP os procinéticos podem ser utilizados. A domperidona é o fármaco mais estudado, sendo a dose recomendada 10 mg antes das refeições, até ao máximo diário de 30 mg. Não parece existir benefício na associação de IBP com procinéticos. Os antidepressivos tricíclicos, pela sua ação neuromoduladora periférica, têm demonstrado eficácia em vários estudos com doentes com sintomas refratários a IBP. O fármaco mais estudado é a amitriptilina que deve ser iniciada à noite, pelo seu efeito sedativo, na dose de 10 mg, e titulada a cada 1-2 semanas até à dose máxima diária de 50 mg. A melhoria sintomática é paulatina, registando-se a partir da terceira ou quarta semanas de terapêutica. No caso de benefício clínico a terapêutica deve ser prolongada por 6 a 12 meses.


Bibliografia e referências: